segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Conto "Do Além" (From Beyond)

“Do Além” – H.P. Lovecraft
Tradução: Renato Suttana



Horrível, para além de qualquer concepção, foi a mudança por que passou meu melhor amigo, Crawford Tillinghast. Eu não o vira desde aquele dia, dois meses e meio antes, quando ele me falou da meta em direção à qual suas pesquisas físicas e metafísicas se encaminhavam e quando respondeu à minha demonstração de espanto e medo expulsando-me de seu laboratório e de sua casa num estouro de raiva fanática. Eu sabia que ele agora passava a maior parte do tempo fechado em seu laboratório no sótão com aquela maldita máquina elétrica, comendo pouco e afastado até dos próprios criados, mas não pensara que um período tão breve de dez semanas pusesse alterar e desfigurar de tal maneira uma criatura humana. Não há prazer em ver um homem garboso tornar-se magro de repente, e é pior ainda quando a pele flácida começa a amarelar ou a acinzentar, os olhos fundos, esgazeados, brilhando de modo sobrenatural, a testa enrugada e coberta de veias, e as mãos trêmulas e contorcidas. E se, adicionado a isso, houver um desalinho repulsivo, uma desordem louca do vestir, moitas de cabelos escuros esbranquiçados na raiz, e uma sombra de barba não aparada sobre um queixo que sempre fora cuidadosamente barbeado, o efeito cumulativo será chocante. Mas esse era o aspecto de Crawford Tillinghast na noite em que sua mensagem pouco coerente me trouxe até sua porta depois de semanas de exílio. Tal era o espectro que tremia enquanto me fazia entrar, uma vela na mão, a olhar furtivamente por sobre o ombro, como se receoso de coisas invisíveis na casa antiga e solitária, situada ao fundo da Benevolent Street.


Para Crawford Tillinghast, ter um dia estudado ciência ou filosofia fora um erro. São coisas que deveriam ser deixadas para o investigador impessoal e frio, pois oferecem duas alternativas igualmente trágicas ao homem de sentimento e ação: desespero, se fracassa em sua busca, e terrores indizíveis e inimagináveis, se obtém sucesso. Tillinghast fora presa uma vez do fracasso, da reclusão e da melancolia; mas agora eu sabia, entre receios repelentes de minha parte, que ele era presa do sucesso. De fato, eu o tinha alertado, duas semanas antes, quando aventou, num ímpeto, a história do que estava prestes a descobrir. Tornara-se vermelho e excitado, falando num tom de voz muito alto e antinatural, embora sempre pedante.

“O que sabemos”, ele dissera, “sobre o mundo e o universo ao nosso redor? Nossos meios de receber impressões são absurdamente escassos, e nossas noções dos objetos que nos cercam são infinitamente estreitas. Vemos as coisas somente na medida em que somos construídos para vê-las e não podemos fazer idéia alguma de sua natureza absoluta. Com cinco débeis sentidos, queremos compreender o cosmos ilimitadamente complexo, enquanto outros seres, com uma gama de sentidos diferente, mais ampla ou mais possante, não apenas poderiam ver de modo diferente as coisas que vemos, como também ver e estudar mundos inteiros de matéria, energia e vida que jazem próximos de nós, mas que não podem ser detectados com os sentidos que temos. Sempre acreditei que tais mundos estranhos e inacessíveis existem colados aos nossos cotovelos, e agora creio que encontrei um modo de romper as barreiras. Não estou blefando. Dentro de vinte e quatro horas aquela máquina sobre a mesa gerará ondas que agirão sobre órgãos ignorados de sentidos que existem em nós como vestígios atrofiados ou rudimentares. Essas ondas abrirão para nós inúmeros panoramas desconhecidos do homem e muitos desconhecidos de qualquer coisa que consideramos como vida orgânica. Haveremos de ver aquilo para o qual os cachorros uivam na escuridão, aquilo para o qual os gatos levantam suas orelhas após a meia-
noite. Veremos essas coisas e outras coisas que nenhuma criatura que respira jamais viu. Vamos saltar sobre o tempo, o espaço e as dimensões e, sem mover nossos corpos, espiar o fundo da criação.”



Quando Tillinghast disse essas coisas, não disfarcei, pois conhecia-o bem o suficiente para ter muito mais receio do que admiração; mas ele era um fanático e expulsou-me da casa. Agora ele não era menos fanático, mas seu desejo de falar sobrepujara o ressentimento, e ele me escrevera num tom imperativo, com uma caligrafia quase ilegível. Quando penetrei na casa desse amigo tão subitamente metamorfoseado numa gárgula vacilante, infectou-me o terror que parecia espreitar em meio a todas as sombras. Era como se as palavras e crenças expressas dez semanas antes se encarnassem na escuridão que cercava o pequeno círculo de luz da vela, e senti-me mal diante da voz oca e alterada de meu anfitrião. Desejei que os criados estivessem por perto e não gostei quando ele disse que todos tinham deixado a casa havia três dias. Pereceu estranho que o velho Gregory, ao menos, pudesse desertar de seu senhor sem dizer isso a um amigo tão próximo como eu. Era ele que me dava toda a informação que tive sobre Tillinghast depois que, furioso, este me expulsou.

No entanto, logo obriguei meus medos a se subordinarem à minha curiosidade e fascinação. O que é que Crawford Tillinghast queria de mim agora eu podia até conjeturar, mas de que ele tinha algum segredo ou descoberta estupenda para revelar, disso eu não duvidava. Antes eu protestara contra sua perquirição indiscreta do impensável, e agora que ele evidentemente tivera algum tipo de sucesso eu quase compartilhava seu espírito, por mais terrível que pudesse ser o custo da vitória. Seguindo a luz vacilante da vela que a mão daquela paródia trêmula de homem segurava, subi em direção à escuridão vazia da casa. A eletricidade parecia ter sido desligada, e quando perguntei ao meu guia ele disse que era por um motivo definido.

“Seria demais... Eu não ousaria”, ele continuava a murmurar. Notei em especial esse seu novo hábito de murmurar, pois não era do seu feitio falar sozinho. Entramos no laboratório no sótão, e observei aquela detestável máquina elétrica a cintilar com uma luminosidade doentia, sinistra, violeta. Estava conectada a uma potente bateria química, mas não parecia receber corrente, pois eu me lembrava de que em seu estágio experimental ela tinha roncado e ciciado quando posta em ação. Em resposta à minha pergunta, Tillinghast sussurrou que esse brilho permanente não era elétrico em nenhum sentido que eu pudesse entender.

Ele me fez sentar próximo à máquina, de modo que ela ficou à minha direita, e acionou um comutador que ficava por baixo de uma profusão de bulbos de vidro. Os estralejos usuais começaram, tornaram-se um gemido, e terminaram num rumor monótono e tão suave que dava impressão de retornarem ao silêncio. Entrementes a luminosidade aumentou, diminuiu, até assumir uma tonalidade pálida e inusitada ou uma mistura de cores que eu não poderia situar ou descrever. Tillinghast tinha estado a me observar, notando minha expressão de perplexidade.


“Sabe o que é isso?”, murmurou, “Isso é ultravioleta”. E gargalhou ao ver a minha surpresa. “Pensou que o ultravioleta era invisível, e é – mas você pode vê-lo e a muitas outras coisas agora. Ouça-me! As ondas dessa coisa estão despertando em você mil sentidos adormecidos – sentidos que você herdou de éons de evolução, desde o estado dos elétrons errantes até o estado da humanidade orgânica. Eu vi a verdade, e pretendo mostrá-la a você. Faz idéia de como ela se parece? Vou dizê-lo a você.” Aqui, Tillinghast se sentou também, de frente para mim, segurando sua vela e olhando-me perversamente nos olhos. “Seus órgãos sensórios existentes – ouvidos primeiro, suponho – captarão muitas das impressões, pois estão intimamente conectados com os órgãos adormecidos. Então haverá outros. Já ouviu falar da glândula pineal? Rio-me dos ingênuos endocrinologistas, pretensiosos e comparsas iludidos dos freudianos. Essa glândula é o órgão sensório por excelência – eu o descobri. É como uma visão, afinal, e transmite imagens visuais ao cérebro. Se você é normal, esse será o modo como você obterá a maior parte... Refiro-me à maior parte da evidência do além.”

Olhei em volta o imenso sótão com a parede alta ao sul, obscuramente iluminada por raios que os olhos cotidianos não poderiam ver. Os cantos mais distantes eram pura sombra, e o lugar inteiro mergulhava numa irrealidade nevoenta que obscurecia sua natureza e convidava a imaginação ao simbolismo e à fantasmagoria. Durante o longo intervalo em que Tillingthast permaneceu em silêncio, tive um devaneio de estar num incrível e vasto templo de deuses há muito desaparecidos, num edifício vago de inúmeras colunas de pedra negra que se elevavam de um piso de lajes úmidas até alturas de nuvens que ficavam para além da minha visão. A imagem me pareceu bastante vívida por algum tempo, mas gradualmente deu lugar a uma concepção mais horrível – aquela da solidão extrema e absoluta do espaço infinito, inescrutável e silencioso. Parecia haver um vazio e nada mais, e senti um medo infantil que me fez sacar do bolso junto ao peito um revólver que passei a carregar desde que fora assaltado em East Providence. 

Então, das mais distantes regiões do remoto, o som deslizou suavemente para dentro da existência. Era infinitamente débil, sutilmente vibrante, e inequivocamente musical, mas continha um não sei quê de indizivelmente selvagem que fazia com que o seu impacto parecesse uma tortura delicada de todo o meu corpo. Vieram-me sensações que eram como se alguém pisasse vidro moído no chão. Simultaneamente, desenvolveu-se alguma coisa como um sopro frio, que aparentemente passava por mim vindo do som distante. Enquanto, sem fôlego, aguardava, percebi que tanto o som quanto o vento estavam aumentando, o efeito assemelhando-se ao de ter sido atado a um par de trilhos no caminho de uma gigantesca locomotiva que se aproximasse. Comecei a falar a Tillinghast e, quando o fiz, todas as impressões incomuns se desvaneceram abruptamente. Vi apenas o homem, as máquinas cintilantes e o cômodo penumbroso. Tillinghast ria de um jeito repulsivo para o revólver que eu sacara quase inconscientemente, mas pela sua impressão compreendi que ele tinha visto e ouvido tanto quanto eu, se não muito mais. Murmurei o que eu tinha experimentado, e ele me instruiu para que permanecesse o mais quieto e receptivo possível.



“Não se mova”, advertiu, “pois nesses raios tanto podemos ver quanto ser vistos. Eu lhe disse que os servos foram embora, mas não lhe disse como. Foi aquela governanta de cabeça dura; ela acendeu as luzes no térreo depois que eu avisei para não fazer isso, e os arames captaram vibrações empáticas. Deve ter sido amedrontador – pude ouvir os gritos daqui de cima, a despeito de tudo o que via e ouvia vindo de outra direção, e mais tarde foi pavoroso encontrar aqueles montes vazios de roupas por toda a casa. As roupas da senhora Updike estavam próximas do comutador de luz da sala – eis como eu soube que ela o fizera. Pegou-os a todos. Mas, desde que não nos movamos, estamos razoavelmente seguros. Lembre-se de que estamos lidando com um mundo medonho no qual somos praticamente indefesos... Fique quieto!” 

O choque combinado da revelação e da intimação abrupta deu-me um tipo de paralisia, e no terror minha mente se abriu de novo para as impressões que vinham do que Tillinghast chamou de “além”. Um vórtice de som e movimento me envolvia agora, imagens confusas surgindo diante de meus olhos. Eu via os contornos imprecisos do cômodo, mas de algum ponto do espaço parecia jorrar uma coluna fervilhante de formas irreconhecíveis ou de nuvens, penetrando no teto sólido num ponto adiante, à minha direita. Então vislumbrei o templo – como efeito novamente, mas desta vez os pilares subiam em direção a um oceano aéreo de luz, o qual despejava um raio de luz ofuscante por todo o caminho da coluna de nuvens que eu vira antes. Depois disso, a cena tornou-se quase inteiramente caleidoscópica, e na profusão de visões, sons e impressões sensoriais não identificadas, senti que estava prestes a me dissolver ou, de algum modo, a perder a forma sólida. De um determinado lance eu hei de me lembrar para sempre. Pareceu-me ter visto, por um instante, uma nesga de estranho céu noturno repleto de esferas cintilantes e rodopiantes, e quando desapareceu vi que os sóis brilhantes formavam uma constelação ou galáxia de forma definida, sendo essa forma o rosto distorcido de Crawford Tillinghast. Noutra ocasião, senti que as coisas imensas e animadas se arrastavam para além de mim e às vezes caminhavam ou vogavam através do meu corpo supostamente sólido, e pensei ter visto Tillinghast olhar para elas como se seus sentidos mais bem treinados pudessem captá- las visualmente. Lembrei-me do que ele dissera acerca da glândula pineal e me perguntei o que ele via com esse olho sobrenatural.

O choque combinado da revelação e da intimação abrupta deu-me um tipo de paralisia, e no terror minha mente se abriu de novo para as impressões que vinham do que Tillinghast chamou de “além”. Um vórtice de som e movimento me envolvia agora, imagens confusas surgindo diante de meus olhos. Eu via os contornos imprecisos do cômodo, mas de algum ponto do espaço parecia jorrar uma coluna fervilhante de formas irreconhecíveis ou de nuvens, penetrando no teto sólido num ponto adiante, à minha direita. Então vislumbrei o templo – como efeito novamente, mas desta vez os pilares subiam em direção a um oceano aéreo de luz, o qual despejava um raio de luz ofuscante por todo o caminho da coluna de nuvens que eu vira antes. Depois disso, a cena tornou-se quase inteiramente caleidoscópica, e na profusão de visões, sons e impressões sensoriais não identificadas, senti que estava prestes a me dissolver ou, de algum modo, a perder a forma sólida. De um determinado lance eu hei de me lembrar para sempre. Pareceu-me ter visto, por um instante, uma nesga de estranho céu noturno repleto de esferas cintilantes e rodopiantes, e quando desapareceu vi que os sóis brilhantes formavam uma constelação ou galáxia de forma definida, sendo essa forma o rosto distorcido de Crawford Tillinghast. Noutra ocasião, senti que as coisas imensas e animadas se arrastavam para além de mim e às vezes caminhavam ou vogavam através do meu corpo supostamente sólido, e pensei ter visto Tillinghast olhar para elas como se seus sentidos mais bem treinados pudessem captá-las visualmente. Lembrei-me do que ele dissera acerca da glândula pineal e me perguntei o que ele via com esse olho sobrenatural.



De súbito, senti-me também possuído por uma espécie de visão aumentada. Por cima e ao longo do caos luminoso e sombrio se elevava uma imagem que, embora vaga, continha elementos de consistência e permanência. Era de fato algo familiar, pois a parte incomum estava superposta à cena comum e terrestre, tal como uma imagem de cinema se pode projetar sobre a cortina pintada de um teatro. Vi o laboratório do sótão, a máquina elétrica e a forma indistinta de Tillinghast em frente a mim, mas de todo o espaço não ocupado por objetos familiares sequer a menor porção estava vaga. Formas indescritíveis, vivas ou não, se misturavam numa desordem repulsiva, e perto de cada coisa conhecida havia mundos inteiros de entidades alienígenas e ignotas. Igualmente, parecia que todas as coisas conhecidas entravam na composição de outras coisas desconhecidas e vice-versa. Mais à frente, entre os objetos vivos, havia monstruosidades pretas, semelhantes a medusas, que estremeciam languidamente com as vibrações da máquina. Manifestavam-se numa profusão nauseante, e eu vi, para o meu horror, que se imbricavam, que eram semifluidas e capazes de passar através umas das outras e daquilo que conhecemos como sólidos. Essas coisas jamais paravam; antes: pareciam flutuar sempre com algum propósito maligno. Às vezes, davam mostras de devorar-se umas às outras, o atacante lançando-se sobre sua vítima e instantaneamente fazendo-a desaparecer de vista. Trêmulo, entendi o que tinha feito desaparecer os infelizes criados, e não podia expulsar a coisa de minha mente enquanto lutava para observar outras propriedades do mundo, há pouco tornado visível, que existe incógnito à nossa volta. Mas Tillinghast tinha estado a me observar e agora falava.

“Você as vê? Você as vê? Vê as coisas que flutuam e se precipitam à sua volta a cada momento de sua vida? Vê as criaturas que formam o que os homens chamam de ar puro e de céu azul? Não tive sucesso em romper a barreira, não mostrei a você mundos que os outros homens jamais chegaram a ver?” Ouvi seu grito através do horrível caos e olhei para a face selvagem que tão ofensivamente se colava à minha. Seus olhos eram poços de chamas e me fitavam com aquilo que – logo entendi – era apenas o mais profundo ódio. A máquina ronronava de maneira horrorosa.

“Pensa que essas coisas rastejantes arrebataram os criados? Tolo, são inofensivas! Mas os criados desapareceram, não é? Você tentou me impedir, você me desencorajou quando precisei de cada gota de incentivo que pudesse obter. Você teve medo da verdade cósmica, seu maldito covarde, mas agora eu o peguei! O que foi que levou os criados? O que os fez berrar tão alto?... Não sabe, hein? Logo, logo saberá. Olhe para mim – ouça o que eu digo. Supõe você que existem mesmo tais coisas como tempo e magnitude? Acredita mesmo que existem tais coisas como forma e matéria? Eu lhe digo, você atingiu profundidades que o seu pequeno cérebro não pode conceber. Vi para além das fronteiras do infinito e arrastei demônios das estrelas... Conduzi as sombras que perambulam de mundo para mundo para semear a morte e a loucura... O espaço me pertence, está me ouvindo? As coisas estão à minha caça agora – as coisas que devoram e dissolvem –, mas eu sei como ludibriá-las. É a você que elas pegarão, como fizeram com os criados... Está tremendo, caro senhor? Eu lhe disse que era perigoso mover-se, coloquei-o a salvo dizendo que se mantivesse quieto – salvei-o para ter mais visões e para me ouvir. Se você tivesse se movido, eles já teriam se atirado sobre você há muito tempo. Não se preocupe, não vão machucá-lo. Não machucaram os criados – foi apenas ver que os fez berrar daquele jeito. Meus bichinhos não são bonitos, pois vêm de lugares onde os padrões estéticos são... muito diferentes. Eu quase os vi, mas soube como parar. Você é curioso? Sempre soube que você não era um cientista. Tremendo, hein? Tremendo de ansiedade para ver as últimas coisas que descobri. Por que não se move, então? Cansado? Bem, não se preocupe, amigo, pois elas estão vindo... Olhe, olhe, amaldiçoado, olhe... Está bem em cima do seu ombro esquerdo.”



O que falta contar é bem pouco, e vocês talvez já tenham sabido por meio dos jornais. A polícia ouviu um tiro na velha casa de Tillinghast e nos encontrou lá – Tillinghast morto, e eu, inconsciente. Prenderam-me, porque o revólver estava em minha mão, mas soltaram-me dentro de três horas, pois descobriram que foi a apoplexia que acabou com Tillinghast e viram que meu tiro tinha sido disparado contra a máquina perversa que agora jaz irremediavelmente destroçada no chão do laboratório. Não contei muito do que vi, pois temi que o coronel ficasse cético, mas, pela descrição evasiva que dei, o médico me disse que, sem dúvida, eu tinha sido hipnotizado pelo louco vingativo e homicida.

Quem dera eu pudesse acreditar no médico. Seria bom para os meus nervos se eu pudesse pôr de lado o que agora tenho de pensar sobre o ar e o céu que me envolvem e que estão acima de mim. Nunca me sinto sozinho e confortável, e um senso horrível e arrepiante de perseguição às vezes me invade quando esmoreço. O que me impede de acreditar no médico é apenas este fato: que a polícia nunca encontrou os corpos dos criados que, segundo dizem, Crawford Tillinghast assassinou.



Créditos:

Quem é Renato Suttana?
Renato Suttana é doutor em Letras e professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em Guaruapuava-PR. É autor de Uma poética do deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de mestrado PUC-MG, 1995), de João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (tese de doutorado, UNESP-Assis, 2003) e do livro de poesias Visita do fantasma da noite (2002). Suttana também mantém seu site na web http://www.arquivors.com. Contatos com o tradutor podem ser feitos pelo email: rsuttana@arquivors.com