quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Isolamento em jogos narrativos

A cidade estava vazia.

Não haviam pessoas pelas ruas. Nem mesmo animais.

Já haviam se passado 10 dias desde que tudo isso havia começado, e apesar de tudo continuar no seu devido lugar, ela não havia encontrado nenhuma outra pessoa pela cidade. Nem mesmos os ratos haviam ficado. O mato já estava avançando pelo asfalto, causando uma forte impressão de abandono.

No primeiro dia, tudo pareceu confuso. A acordar, desceu para a cozinha, para preparar o café. Passou pelos quartos, mas o mesmos estavam vazios. Ainda era muito cedo, sendo improvável que todos já tivessem saído para a escola e trabalho. Ela percebeu que não havia ninguém em sua casa, e mesmo após passar vários minutos chamando, não obteve resposta nem de seu filho ou sua filha, nem mesmo de seu marido.



Ela estava só.

Resolveu então, sair de casa, mas fora, as coisas somente se tornaram mais estranhas. Não haviam pessoas pelas ruas, e morando numa área central da cidade, isto era algo surreal e impossível. Depois de algumas horas andando, deveria ter encontrado alguém, nem mesmo que fosse um mendigo.

Mas não havia ninguém. Nem mesmo pássaros.

O seu relógio de pulso marcava a passagem das horas normalmente, havia luz elétrica e água nas torneiras. Mas fora isso, tudo o restante era um mistério. A total ausência de outras pessoas, animais, ruídos de qualquer espécie, era profundamente perturbadora.

O silêncio imperava absoluto.

Mas isso era apenas durante o dia. Durante a noite, a situação mudava drasticamente. Os ambientes familiares, tão comuns e ordinários, ao longo o dia, se tornavam hostis e amedrontadores durante a noite. Mas o mais perturbador era o retorno de alguns sons.

Principalmente passos.



Saudações amigos.

Conforme havia falado anteriormente, o terror e o horror são fundamentados em alguns pontos básicos e comuns, sendo um dos principais o isolamento. O isolamento se dá quando o indivíduo ou grupo de de indivíduos, se encontra fisicamente, socialmente ou psicologicamente sozinhos, afastado dos demais seres humanos.

O isolamento físico (ou geográfico) pode ser exemplificado no caso do naufrágio, que após ter o seu navio afundado, é o único sobrevivente a chegar na ilha desconhecida, estando por conta própria e sozinho; dependendo única e exclusivamente de si mesmo e suas próprias habilidades para sobreviver e sair do local.

O isolamento social ou psicológico se dá por uma série de fatores, porém o principal são as doenças da mente, comumente conhecidas como distúrbios psicológicos ou psiquiátricos. Num exemplo simples, a pessoa que sofre com depressão, costuma se sentir abandonada, sem esperança e sozinha, mesmo que esteja numa casa cheia de familiares amorosos e preocupados com o seu bem estar. Da mesma forma, alguém que seja esquizofrênico ou paranoico, e acredite firmemente que está sendo seguido, e ninguém mais acredite nela.



O ser humano é uma criatura social, dependente do contato com outras pessoas, necessitando tanto do contato físico quanto das interações sociais, para se manter saudável e ativo. Psiquiatras e psicólogos alertam para o fato de que o isolamento por grandes períodos de tempo pode levar a desnutrição, desidratação, em alguns casos mais severos, até mesmo a morte, seja por suicídio, ou por um colapso geral do organismo. Da mesma forma, a falta de comunicação verbal pode acarretar em delírios, desmaios e outras reação imprevisíveis.

Caros, não estou afirmando que estas informações sejam 100% cientificamente precisas, ou mesmo que eu seja um médico especializado na área, o que NÃO SOU! Estas informações são apenas uma base pra que possamos entender e ajustar a direção da nossa jogatina. Um livro com muitas informações sobre transtornos psicológicos e psiquiátricos é o livro básico do Call of Cthulhu, e futuramente sua versão traduzida. É possível achar algumas informações também no livro básico do Storytelling, o Mundo das Trevas, da Whitewolf (o sucessor do Antigo Mundo das Trevas, o Storyteller).

Dito isto, vem a pergunta chave e da nossa postagem:

"Como podemos aplicar isso tudo em uma sessão de jogo?"


Existem algumas maneiras de fazermos isto. Vou começar ilustrando com uma campanha de fantasia medieval, depois, pra uma situada na Inglaterra vitoriana, e depois, numa campanha contemporânea.



Em uma campanha de fantasia medieval:

- Aqui, temos algumas situações que funcionariam perfeitamente:

* Os PJs ficam geograficamente isolados, como ao caírem numa armadilha dentro da masmorra, serem jogados num nível completamente desconhecido, não mapeado e não linear da mesma. Algo como uma caverna, com um rio subterrâneo, onde a única fonte de iluminação provém das tochas dos PJs, onde a infra-visão dos semi-humanos não funciona como deveria. Com o uso de alguns sons e ruídos desconhecidos, esta situação por si só já deveria ser apavorante, ainda mais se os PJs tiverem perdido seus equipamentos, ou tiverem poucas tochas para manter a iluminação dentro do subterrâneo.

* Os PJs invadem um castelo, porém, uma vez lá dentro, descobrem que o castelo na verdade, é um portal para outra dimensão; e nesta dimensão, tudo parece uma cópia invertida do castelo, e nada é como deveria ser, o que parece inofensivo no dia-a-dia dos PJs, aqui assume um ar maligno e predatório. Até mesmo a água pode causar efeitos diversos nos personagens. (Idéia tirada da série Castlevania. Alucard Rules!!!)
Os personagens só podem contar com eles mesmo, e talvez o equipamento que possuem, estando totalmente sozinhos e sem meio conhecido de retorno...

* Ao explorarem uma floresta próxima a cidade, que possui fama de ser mal-assombrada, os PJs encontram um portal mágico, que os teleporta para uma outra cidade, cercada por uma densa floresta negra por todos os lados, onde as únicas rotas de acesso são pelas duas estradas, uma de cada lado da cidade; uma passando por dentro da floresta, numa espécie de trilha, e outra passando próxima a margem de um rio de águas negras. (inspirado no Domínio de Sithicus, cujo Lorde de Domínio é Lord Soth, o Cavaleiro da Morte. Logicamente, o Domínio fica no Semiplano do Pavor, Ravenloft!)



Em uma campanha situada na Inglaterra vitoriana:

* Os PJs (ou investigadores) são contratados por um Lorde, que deseja adquirir pequeno castelo, numa propriedade ao norte de Londres, cuja fama de mal-assombrada espanta até mesmo os mais corajosos caçadores de recompensas. Localizada a cerca de dois dias de viagem a cavalo, a região é uma charneca inóspita e isolada, não havendo nenhum vilarejo ou aldeia próximos; é dada aos PJs então, a tarefa de investigar a causa dos misteriosos desaparecimentos ao longo das ultimas semanas, inclusive do último grupo contratado para a mesma tarefa. Os únicos rastros deixados são alguns equipamentos deixados na porta da fortificação, e uma carta, sem remetente nem destinatário, toda borrada, onde se pode ler apenas uma frase: "Não estamos SOZIN..."

* O trem que transportava os PJs quebra, entre duas estações realmente distantes entre si, obrigando os mesmos a descerem no meio da ferrovia. Uma vez fora do trem, o grupo percebe estar num local afastado e ermo, rodeado por bosques de carvalhos e turfa, e uma constante névoa paira sobre as árvores e o chão. Ao se afastarem um pouco para observar melhor os arredores, perdem o trem de vista, e eis que alguns minutos depois, escutam o mesmo entrar em movimento, mas não conseguem retornar a tempo, ficando para trás. Os personagens então, percebendo que estão sem comunicação, sem cavalos nem equipamentos, precisam
rapidamente decidir o que irão fazer seguir e de que forma vão escapar desta situação. Acrescenta-se a isso o barulho de galhos quebrando, as brumas ficando mais densas, e um casarão abandonado em meio aos bosques, e tcharan!

* Um dos PJs recebe um telegrama, de um parente distante, informando que um primo (ou prima, ou sobrinho, ou um parente mais próximo e querido) foi passar um final de semana numa pequena cidade portuária a algumas semanas, porém, nunca mais foi visto após ter ido para a dita cidade. O grupo então, resolve intervir e ir até o local onde o parente foi visto pela última vez. Chegando lá, percebem que logo na entrada da cidade, existem algumas carroças abandonadas, com algumas malas velhas e estragadas. A cidade em si possui pouquíssimos habitantes, com várias casas vazias ou abandonadas, algumas até mesmo ruindo; e após algumas horas investigando e tentando falar com os poucos moradores que encontram, mas se recusam a conversar com os mesmos, percebem que além de os telefones estarem mudos e não sentirem bem vindos, existe algo sinistro acontecendo na cidadezinha. Agora, além de terem que encontrar o parente perdido, provavelmente os PJs vão ter que bolar um jeito de sair e rápido, uma vez que estão sozinhos, mal equipados e sem nenhum meio de comunicação com as autoridades. (Inspirado no conto Shadow Over Innsmouth, de HP Lovecraft)



Já numa campanha contemporânea, com fácil acesso a smartphones, internet, veículos baratos, é preciso ser um pouco mais criativo:

* O grupo de PJs estudantes de cinema resolvem fazer um documentário sobre uma lenda urbana antiga, sobre uma criatura chamada Demônio de Jersey; e então se deslocam com todo o aparato para produção do documentário. Chegando ao local, um bosque de árvores antigas e acinzentadas, a van que os transportava quebra, ficando enguiçada na estrada, ao mesmo tempo que percebem que nenhum celular funciona no local, e também não há conexão de internet via satélite. O grupo resolve então, explorar os arredores, e depois de alguns minutos caminhando, ouvem um barulho vindo da van. Voltam então rapidamente, e descobrem que todos os equipamentos foram revirados, algumas câmeras foram quebradas e uma boa parte da comida foi levada, ficando apenas algumas garrafas de água e algumas frutas. Sem comunicação, sem comida e sem meios de retornar, o grupo precisa descobrir rapidamente uma maneira de retornar a civilização. É quando um deles percebe um vulto esguio se esgueirando para dentro da mata.

* Os PJs são tripulantes de uma barco pesqueiro, e em um belo dia de sol, os mesmos avistam um nevoeiro se formando no meio do oceano, avançando rapidamente sobre a embarcação, não dando tempo aos PJs para escaparem da névoa. Uma vez dentro da mesma, percebem que nenhum equipamento de navegação funciona, nem mesmo as bússolas, e não é mais possível ver o céu, ou mesmo as estrelas. Isolados em alto mar, os personagens começam a ouvir ruídos estranhos e ver estranhos vultos.



Estes esboços já nos dão uma bela imagem da sensação do isolamento.

Caros, fico por aqui, e caso tenham alguma dúvida, comentário, sugestão, deixem um comentário ai embaixo, e assim que possível eu retorno pra vocês.

Obrigado pela companhia e espero que tenham curtido esta abordagem para enriquecer os nossos jogos.